As férias escolares chegam como um alívio na rotina das famílias. Menos despertador, menos correria, mais tempo livre. Para muitas crianças e adolescentes, esse tempo livre se traduz em mais horas conectados. Celular na mão, vídeos rolando, jogos online, redes sociais abertas. Tudo isso, quase sempre, dentro de casa.
Existe uma falsa sensação de segurança quando o acesso acontece no quarto ao lado ou no sofá da sala. Estar em casa não significa estar protegido. A internet não respeita paredes, horários ou idade. Durante as férias, o aumento do tempo online amplia também a exposição a riscos, especialmente os relacionados à violência sexual online contra crianças e adolescentes.
Esse não é um achismo. É um dado respaldado por pesquisa, por relatos e por uma realidade que cresce em silêncio.
O que a pesquisa do ChildFund revela sobre adolescentes na internet
O ChildFund Brasil, organização com quase 60 anos de atuação na promoção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes, divulgou um estudo essencial para entender esse cenário. O Mapeamento dos Fatores de Vulnerabilidade de Adolescentes Brasileiros na Internet ouviu mais de 8.500 adolescentes entre 13 e 18 anos, de todas as regiões do país, com maior concentração no Nordeste e no Sudeste.
Os números ajudam a tirar o tema do campo da opinião e colocá-lo no campo da urgência.
Quanto maior a idade, maior o tempo diante das telas e maior a exposição a riscos. Jovens de 17 e 18 anos têm até 1,3 vez mais chance de sofrer algum tipo de violência online quando comparados aos adolescentes de 15 anos. Isso desmonta a ideia de que o risco diminui com a idade. Na prática, ele muda de forma e muitas vezes se intensifica.
Outro dado chama atenção de forma direta. Setenta e nove por cento dos hobbies relatados pelos adolescentes são digitais. Jogos, redes sociais, vídeos, consumo de conteúdo. As interações presenciais perdem espaço, enquanto o ambiente online se torna o principal território de socialização.
Instagram e TikTok aparecem entre os aplicativos mais usados. Plataformas com enorme potencial criativo, mas também com riscos conhecidos, especialmente quando envolvem mensagens privadas, lives, comentários e conteúdos impulsionados por algoritmos.
Violência online existe, mas quase ninguém sabe denunciar
Talvez o dado mais alarmante da pesquisa seja este. Noventa e quatro por cento dos adolescentes afirmam não saber como denunciar situações de perigo na internet.
Isso significa que, mesmo quando percebem algo errado, não sabem qual caminho seguir. A reação mais comum é bloquear o usuário suspeito. Bloquear traz alívio momentâneo, mas não interrompe o ciclo de violência. O agressor continua ativo, abordando outras vítimas.
A subnotificação se torna parte do problema. Sem denúncia, não há investigação. Sem investigação, não há responsabilização.
Esse cenário revela uma falha coletiva. Falha de plataformas, falha de políticas públicas e falha na educação digital oferecida a crianças, adolescentes e também aos adultos responsáveis.
Supervisão parental ainda é exceção, não regra
Outro ponto crítico revelado pelo levantamento do ChildFund é a supervisão parental. Apenas 35 por cento dos adolescentes relatam algum tipo de acompanhamento digital por parte dos responsáveis.
Supervisionar não significa invadir conversas, vigiar cada clique ou transformar a casa em um ambiente de desconfiança. Supervisão é presença, diálogo, orientação e construção de repertório emocional para lidar com riscos.
Quando essa supervisão não existe, a criança navega sozinha por um território que nem mesmo muitos adultos compreendem completamente.
A pesquisa também mostra uma diferença importante entre gêneros. Meninas relatam sensação de insegurança quase duas vezes maior que a dos meninos. Isso dialoga diretamente com a forma como a violência sexual online se manifesta, muitas vezes direcionada de maneira mais intensa ao público feminino, seja por meio de pedidos de fotos, comentários invasivos ou abordagens sexualizadas.
Os tipos de violência mais comuns no ambiente digital
O estudo identificou 14 tipos diferentes de violência vivenciadas por adolescentes na internet. Elas foram organizadas em quatro grandes categorias.
A primeira envolve privacidade e segurança. Aqui entram invasão de contas, roubo de dados, acesso não autorizado a perfis e exposição indevida de informações pessoais.
A segunda categoria trata de ameaças e assédio. Inclui bullying, comentários ofensivos, perseguição online e intimidação.
A terceira envolve conteúdo sensível. Pedidos de fotos íntimas, envio de imagens explícitas sem consentimento e exposição a conteúdos inadequados para a idade.
A quarta categoria aborda discussões virtuais que se transformam em ataques, humilhações públicas e linchamentos digitais.
Essas violências não acontecem de forma isolada. Muitas vezes, elas se sobrepõem e evoluem. Uma invasão de conta pode levar à exposição. Uma conversa aparentemente inofensiva pode evoluir para uma abordagem sexual. O risco raramente chega anunciado.
Férias escolares ampliam vulnerabilidades já existentes
Durante o período escolar, a rotina funciona como uma espécie de contenção. Horários definidos, atividades presenciais, menos tempo ocioso. Nas férias, esse equilíbrio se rompe.
Crianças acordam mais tarde, passam mais tempo sozinhas com dispositivos e, em muitos casos, sem adultos disponíveis durante o dia. Isso não acontece por negligência, mas por realidade. Pais e mães seguem trabalhando, muitas vezes fora de casa ou em home office.
É nesse espaço que a vulnerabilidade cresce. Mais tempo online, menos supervisão, mais exposição a desconhecidos e menos repertório para lidar com situações de risco.
Falar de violência sexual online contra crianças durante as férias não é alarmismo. É prevenção.
O papel dos adultos na segurança digital infantil
Não existe solução simples, mas existem caminhos possíveis.
O primeiro deles é a conversa constante. Não aquela conversa pontual depois de um susto, mas diálogos frequentes, adequados à idade e sem tom acusatório. Crianças precisam saber que podem contar o que acontece online sem medo de punição.
O segundo caminho é a educação digital prática. Ensinar como denunciar em cada plataforma, explicar o que é um pedido inadequado, mostrar que ninguém tem direito de solicitar fotos, vídeos ou informações pessoais.
O terceiro envolve o uso consciente de ferramentas de controle parental. Elas não substituem o diálogo, mas ajudam a criar camadas adicionais de proteção.
Também é fundamental que adultos se atualizem. Entender como funcionam Instagram, TikTok, jogos online e aplicativos de mensagem não é opcional. É parte da responsabilidade de quem cuida.
Plataformas também precisam assumir responsabilidade
Não é possível falar de segurança digital infantil sem mencionar o papel das plataformas. Redes sociais lucram com engajamento, tempo de tela e interação constante. Isso inclui o público jovem.
Ferramentas de denúncia precisam ser mais claras, acessíveis e eficazes. Algoritmos precisam ser ajustados para reduzir a exposição de crianças a conteúdos sensíveis. A responsabilidade não pode recair apenas sobre famílias.
Organizações como SaferNet Brasil, UNICEF e o próprio ChildFund têm produzido materiais importantes sobre o tema e pressionado por mudanças estruturais. Essas iniciativas precisam de apoio, visibilidade e cobrança contínua.
Proteger crianças online é uma responsabilidade coletiva
A internet não é um espaço separado da vida real. O que acontece ali impacta emocionalmente, psicologicamente e socialmente crianças e adolescentes.
Durante as férias escolares, esse impacto se intensifica. Ignorar esse fato é abrir espaço para que a violência continue acontecendo de forma silenciosa.
Fortalecer a mensagem sobre proteção infantil é um dever coletivo. De famílias, educadores, plataformas, governos e da sociedade como um todo.
Falar sobre violência sexual online contra crianças não tira a infância de ninguém. Pelo contrário. Ajuda a preservá-la.
Se este texto servir para iniciar uma conversa, orientar uma família ou incentivar uma denúncia, ele já cumpriu seu papel.
