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Seu filho ou filha não gostam ou nunca teve boas referências?

Introdução alimentar vai além do prato: é cultura, exemplo, vínculo e escuta. Descubra como formar um paladar saudável e crítico nas crianças.

A cena é familiar para muitos pais: uma criança encara o prato com desconfiança, mexe com o garfo, recusa o que não conhece e pede, pela milésima vez, a mesma comida de sempre. Do outro lado da mesa, um adulto respira fundo e se pergunta: “O que mais eu posso fazer para essa criança comer bem?”

A resposta não é simples. Mas talvez o primeiro passo seja olhar para essa situação com mais generosidade e entender que introdução alimentar não é um evento, é um processo longo, contínuo e coletivo. Envolve afeto, exemplo, paciência e, acima de tudo, presença.

A introdução alimentar começa antes da comida chegar no prato

É comum associarmos introdução alimentar ao momento em que o bebê começa a comer sólidos. Aos seis meses, com orientação de pediatras e nutricionistas, as famílias iniciam esse rito de passagem do leite materno ou fórmula para os alimentos. Mas, na prática, a introdução alimentar começa muito antes.

Desde cedo, a criança observa tudo ao redor. Ela vê o que os adultos comem, como comem, onde comem e com quem. O ambiente da refeição, a linguagem usada para falar sobre comida, a frequência com que certos alimentos aparecem, tudo isso entra no radar.

Se os pais vivem reclamando de salada, fazem cara feia para legumes, comem rápido, distraídos, ou passam a maior parte das refeições olhando para a tela do celular, que tipo de mensagem está sendo transmitida? A comida, nesse caso, vira um obstáculo, uma tarefa, e não um momento de conexão.

O exemplo dos adultos: espelho ou referência?

Crianças são grandes imitadoras. Elas copiam o que veem, mesmo que não entendam ainda o porquê. Se o adulto saboreia uma fruta, elogia um prato colorido e demonstra prazer em comer vegetais, isso fica registrado. Mesmo que a criança não aceite aquele alimento de imediato, ela vai assimilar a experiência.

Agora, se tudo que ela vê são adultos que só comem o básico, não experimentam nada novo e rotulam tudo que é saudável como “sem graça”, o paladar dela será moldado nessa mesma lógica. A pergunta que precisamos nos fazer não é “meu filho come bem?”, mas sim “o que ele vê os adultos ao redor comendo?”

A experiência no Bendito Fermento e o poder do paladar expandido

Um dos meus lugares favoritos em Sorocaba é o @benditofermento. Tudo ali é feito com cuidado: pães com fermentação natural, ingredientes frescos, receitas com personalidade. Recentemente levei os Jovens Padawans para lá, e foi mais do que um lanche. Foi uma oportunidade de apresentar sabores fora da zona de conforto.

A Bu simplesmente amou a mistura de abobrinha grelhada, mel e queijo cottage, servido em uma focaccia fresquíssima. A crocância do pão e os sabores inesperados fizeram a garota se apaixonar por esse panino. Já o Padawan curtiu o panino de pastrami, muçarela, mostarda e picles de cebola roxa. Sabores intensos, com equilíbrio entre gordura, acidez, cremosidade e crocância. Sabores difíceis para muitas crianças e até para alguns adultos.

E por que eles aceitaram? Porque já estão acostumados a provar, a confiar, a questionar o que gostam ou não. Não tem mistério: o paladar se educa com exposição e afeto.

Exposição sem pressão: o segredo está na repetição

Estudos mostram que uma criança pode precisar experimentar um alimento mais de dez vezes antes de aceitá-lo. Isso não quer dizer forçar, ameaçar ou premiar com sobremesa. Significa simplesmente oferecer de novo. Com leveza. Com alegria. Com normalidade.

Se ela recusar hoje, tudo bem. Se recusar amanhã, também. Mas se aquele alimento continuar aparecendo no prato dos adultos, se continuar sendo oferecido com tranquilidade, há uma grande chance de ser aceito em algum momento.

É preciso lembrar que o paladar infantil está em formação. Não é um botão de liga e desliga. É uma construção, como aprender a andar, falar ou ler.

Permitir que eles questionem: “não gostei, mas por quê?”

Tem uma frase que gosto muito: “não diga que não gosta, diga o que você não gostou”. Ensinar isso às crianças é dar a elas a chance de formar um paladar com identidade. Elas aprendem a prestar atenção no sabor, na textura, na temperatura, no cheiro. Aprendem a nomear suas preferências, e isso é valioso.

Ao invés de dizer “você tem que comer isso porque faz bem”, que tal “vamos descobrir o que nesse sabor você não curtiu”? Muitas vezes, é o tempero. Ou a textura. Ou o jeito como foi apresentado. Quando a criança se sente escutada, ela participa do processo e cria confiança.

Comida é mais que nutrição: é cultura, memória e afeto

Reduzir a alimentação a nutrientes é uma armadilha moderna. Claro que precisamos cuidar da saúde, evitar excesso de açúcar, sal e ultraprocessados. Mas comida é muito mais que isso.

Comida é memória afetiva. É o cheiro da casa da avó, o bolo do aniversário, a sopa nos dias frios, a fruta que a gente colhia do pé. É vínculo. É tradição. É parte da nossa identidade.

E negar isso às crianças é tirar delas uma dimensão rica da vida. Ao invés de focar no “coma porque é saudável”, podemos dizer “vamos experimentar isso juntos, tem uma história aqui dentro”.

A introdução alimentar como construção social

Falar de introdução alimentar também é falar de desigualdade, cultura e acesso. Não basta dizer “ofereça variedade” se essa variedade não está disponível para todas as famílias. Mas mesmo com limitações, é possível construir experiências significativas.

Podemos ensinar sobre onde a comida vem, quem planta, quem prepara. Podemos visitar feiras, cozinhar juntos, plantar temperos. Podemos contar histórias sobre alimentos típicos de outras regiões ou culturas.

Tudo isso forma um repertório. E quanto maior o repertório, mais referências a criança terá para entender o que gosta e o que não gosta, e por quê.

E se a criança realmente não gostar?

Tudo bem. Nem todo mundo gosta de tudo. O importante é não encerrar a conversa na recusa. Podemos dizer “hoje não rolou, mas quem sabe outro dia?”. Ou “vamos tentar esse mesmo ingrediente de outro jeito?”. Flexibilidade e respeito são essenciais.

Lembre-se: o objetivo não é fazer com que a criança coma certinho, mas ajudá-la a criar uma relação positiva com a comida.

Dicas práticas para pais e mães

  1. Coma junto sempre que possível
  2. Evite telas durante a refeição
  3. Cozinhem juntos
  4. Apresente de formas diferentes
  5. Não use comida como punição ou recompensa
  6. Estimule o vocabulário sensorial
  7. Celebre a descoberta, não o desempenho

A longo prazo, o que fica?

Mais do que gostar de couve ou detestar jiló, o que fica é a relação construída. Uma criança que teve liberdade, incentivo, escuta e referências positivas vai crescer com mais autonomia sobre o próprio corpo e suas escolhas.

Ela pode até não gostar de tudo, mas saberá provar com curiosidade, respeitar as diferenças e fazer escolhas mais conscientes. E isso vale ouro.

Conclusão

A introdução alimentar é uma porta de entrada para muito mais do que o universo da nutrição. É uma forma de apresentar o mundo, de ensinar empatia, de formar vínculos e até de transmitir valores culturais e familiares. Ao transformar a hora da comida em um espaço de descoberta e não de obrigação, ajudamos nossos filhos e filhas a construírem não só um paladar mais rico, mas uma relação mais saudável e consciente com tudo que envolve o comer.

E sim, às vezes, esse processo começa com uma focaccia, abobrinha grelhada, um queijo suave e um sorriso curioso do outro lado da mesa.

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