Comemorar a morte de alguém ainda é real. E assustador

Comemorar a morte de alguém ainda é real. E assustador

“Muitos que vivem merecem a morte. E alguns que morrem merecem a vida. Você pode dar isso a eles, Frodo? Então não se apresse em julgar e condenar alguém à morte. Mesmo os muito sábios não conseguem ver todos os fins.”
— Gandalf, em O Senhor dos Anéis: A Sociedade do Anel

Essa citação nunca me pareceu tão atual quanto agora..

Ontem, dia 20 de julho de 2025, vi uma postgaem de alguém, em uma rede social, comemorando a morte da Preta Gil. Era irônico, debochado, mas principalmente, desumano. E não foi um caso isolado. Os comentários estavam ali, empilhados como pedras em uma fogueira antiga, alimentando um tipo de prazer sombrio que já é velho conhecido da história humana.

Sim, ainda comemoramos a morte de alguém. E isso diz muito sobre nós.

O prazer ancestral de ver alguém morrer

Não é novidade. A humanidade sempre teve seus momentos de sangue e aplausos. No Império Romano, milhares lotavam o Coliseu para ver gladiadores se matarem. Na Idade Média, execuções públicas eram festas. Na Revolução Francesa, a guilhotina virou espetáculo popular. Esses atos não eram apenas sobre punição. Eram sobre prazer. Sobre catarse. Sobre um tipo de justiça que se satisfaz no fim do outro.

Hoje não temos mais arenas. Mas temos comentários. Stories. Reels. E hashtags.

A diferença é que, agora, a plateia está a um clique de distância, e o sangue vem em forma de likes.

Não é só política. Nunca foi.

É tentador jogar isso no colo da polarização política. Mas seria ingênuo ou conveniente demais reduzir o problema a isso. A verdade é que pessoas comemoram a morte de outras por diversos motivos:

  • Por vingança
  • Por guerra
  • Por religião
  • Por poder
  • Por dinheiro
  • Por amor
  • E, muitas vezes, por puro ódio

Comemorar a morte virou uma forma de gritar “venci” quando a gente não tem nenhuma outra vitória real na vida. É o alívio canalizado por quem não aprendeu a transformar dor em compaixão.

Preta Gil e o reflexo do nosso tempo

Preta Gil era filha de Gilberto Gil, uma artista plural, uma mulher que sempre usou sua voz — para falar sobre corpo, identidade, direitos, espiritualidade e, nos últimos anos, sobre o câncer. Sua trajetória foi marcada por coragem pública e coerência íntima.

Não se trata de idolatria. Mas de dignidade.

E o que vi nas redes, de ontem para hoje, não tem nada a ver com política. Não tem nada a ver com gosto musical. Tem a ver com gente que perdeu completamente a noção do que é ser humano.

Sim, houve comoção. Homenagens sinceras, lágrimas, músicas relembradas. Mas também houve gente celebrando a morte. Gente que nunca a conheceu pessoalmente. Que talvez nem saiba direito por que odeia.

É cruel. É absurdo. Mas não é surpreendente.

Esse tipo de reação é o produto de uma cultura digital que banalizou a vida humana em troca de engajamento. Onde se debocha da dor alheia porque isso “dá view”. Onde o algoritmo impulsiona o absurdo, e a empatia é tratada como fraqueza.

Comemorar a morte de alguém é fracasso coletivo

Pode parecer forte, mas é o que acredito: ver pessoas comemorando a morte de alguém é um sinal claro de que fracassamos como sociedade.

Não no sentido individual, mas estrutural mesmo.

Fracassamos quando educamos para competir e não para sentir. Quando tratamos empatia como algo secundário. Quando normalizamos a desumanização do outro porque “ele pensa diferente de mim”.

É nesse ambiente que o ódio floresce. E que a morte do outro vira troféu.

O papel das redes sociais nesse cenário

A palavra-chave secundária aqui é importante: ódio nas redes sociais.

As redes não criaram o ódio, mas elas o amplificaram. Segundo estudo da Harvard Kennedy School (2022), conteúdos com alta carga emocional, especialmente raiva e escárnio, têm 20% mais chance de viralizar do que os neutros.

Isso significa que as plataformas, por seu próprio design, favorecem o que há de mais inflamável na natureza humana.

Quando alguém comemora a morte de uma pessoa famosa, por exemplo, o sistema não enxerga essa falta de empatia, pois ele só mede o alcance. E quando as respostas são gargalhadas e palminhas, o algoritmo entende: “Isso funciona”.

Funciona para quem? Para o mercado. Para a máquina. Mas não para a humanidade.

Existe saída?

Eu quero acreditar que sim.

A primeira é não se calar diante da crueldade. Se você vê alguém comemorando a morte de outra pessoa, mesmo que seja uma figura pública com a qual você discorda, diga algo.
Chamar esse comportamento pelo nome é o primeiro passo.

A segunda é ensinar nossos Padawans a sentir. A identificar emoções. A ter empatia. Isso começa em casa, mas também precisa ser assunto nas escolas, nas mídias, nas conversas do dia a dia.

A terceira é cuidar do que consumimos. Se a timeline está lotada de ódio, troque de ambiente.
Se você compartilha algo, pense antes. Às vezes, o silêncio é resistência.

O que nos resta é ser melhor do que isso

Volto ao Gandalf.

Nem os muito sábios conseguem ver todos os fins. Mas há algo que a gente pode enxergar agora: o tipo de sociedade que estamos ajudando a construir. E a resposta, muitas vezes, está no que escolhemos aplaudir.

Comemorar a morte de alguém é descer ao ponto mais baixo da alma. Se ainda fazemos isso, é porque temos muito a evoluir. Mas nunca é tarde para mudar. E é isso que eu espero no fundo do meu coração.